terça-feira, fevereiro 27, 2007

NO «CAOSMOS» (*)


“De vez em quando, é preciso vir um poeta para limpar a língua” disse Jorge Silva Melo no 80.º aniversário de António Ramos Rosa (Faro, 17/10/1924). Pois, de vez em quando é preciso trazer Ramos Rosa. Dou conta do seu relevo na minha estante ao saber que o Pen Club o indicou (com Herberto Hélder) para candidato ao Nobel da Literatura, quase 50 anos depois do lançamento do seu primeiro livro (O Grito Claro, 1958). Inconsciências conscientes do maior, e mais galardoado, poeta português vivo (Prémio Pessoa 1988; Grande Prémio Internacional de Poesia, 1990, Poeta Europeu da Década, 1991; Pen Club de Poesia, 1980 e 2005), cuja contemporaneidade foi, curiosamente, dada por uma banda nacional de hip-hop (Da Weasel) - “Não posso adiar o amor para outro século/…/Não posso adiar o coração” -, lembram-se?
Como a sua geração, Ramos Rosa começou por responder às exigências de resistência à Ditadura - “Sou um funcionário apagado/Um funcionário triste” -, acompanhando a retórica e imaginário neo-realista e surrealista -“Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!/…/Ó boi da paciência que fazes tu aqui?”. Depois, após o encontro com a poesia de Éluard, numa constelação simples, a “nudez do verbo”, a “desmaterialização das coisas e da língua” (em que podemos agrupar alguns núcleos em torno de terra/ar/água, sol/sombra, pedra/corpo), a poesia «ramos-rosiana» constitui-se como “respiração incessante cheia de palavras inaugurais”. A “matéria do real e a matéria do poema” acompanha-o entre os anos 60 e 80 - “ó sabor antes de mim/ó quanto eu não sabia e tudo em mim sabia” -, de acordo com a ruptura e despojamento que caracteriza a arte no século XX. Um poeta que escreve para que “apareçam certas palavras, para que essas palavras digam qualquer coisa que só elas poderiam dizer. Em vez de a palavra estar pendente de qualquer coisa, é já qualquer coisa: criação”. Um poeta sem musa “porque o verdadeiro destinatário do poeta é o poema” - “É por ti que escrevo que não és musa nem deusa/mas a mulher do meu horizonte”-, pois o amor, em Ramos Rosa, reconhece-se sem lírica - “Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa/fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz” -, e “a matéria é só uma, terrestre e divina”. Um poeta “tão francês como português”, “influenciável e um pouco plagiador” que, apesar da recente "reconciliação com as palavras e com o discurso" (e publicidade), tem permanecido n’ «A dança entre o sim e o não» da modernidade, esse porto "anterior a todos os portos", segundo Eduardo Lourenço, no «afirmar/interrogar o Real», na «opacidade/transparência» da relação (desejo) do sujeito e o mundo - “Estou vivo e escrevo sol”.
No «caosmos» (neologismo de preferência) o poeta-paradoxo (quanto mais poesia escreve, perto de 60 publicações, menos nos permite falar sobre a sua obra), diz-nos que vivemos o tempo de Heraclito “o caminho que vai para baixo é o caminho que vai para cima”. Ainda assim, António Ramos Rosa -“Escrever [um Nobel] seria amar-te? ”

(*) Baseado em: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998; António Ramos Rosa - Antologia Poética. Pub. D. Quixote, 2001; Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Ed. Cotovia, 2002; Suplemento “Mil Folhas”. “Público”, 23 de Outubro de 2004

Publicado no Suplemento de Cultura do Açoriano Oriental

domingo, fevereiro 18, 2007

ABSTENCIONISTAS UNIDOS

“Éramos mandados, somos governados.” Socorro-me de Antero de Quental quando numa das suas mais constantes bandeiras reconhecia que “persiste a inércia política das populações, a necessidade (e o gosto, talvez) de que as governem” (1).
De novo pasmos ou indignados com os valores da abstenção eleitoral na Região. Desta vez, chegou aos 70,5% baixando apenas 2,4%, em relação a 98, quando no todo nacional desceu 12%. Dizer que a abstenção técnica (cadernos desactualizados) tem muita culpa é «tapar o sol com a peneira». Através dos números, comparando o exercício do voto nas regionais, autárquicas e nacionais, tornou-se, para mim, claro que os eleitores açorianos não estão, minimamente, mobilizados para as eleições nacionais. Se alguém se der ao trabalho de confirmar os resultados desde 1998 (última grande actualização dos cadernos) a abstenção na Região em actos eleitorais de âmbito nacional nunca baixou os 50%: Nacionais (1999 – 49,7%; 2002 – 51,9%; 2005 – 51,8%), Presidenciais (2001 – 62, 8%; 2006 – 56,9%), Europeias (1999 – 69,1%; 2004 – 69,4%), Referendos (1998 – 72,9%; 2007 – 70,5%). Não me digam que não temos aqui um problema!?! A Região está, consecutivamente, a ter as maiores taxas do país. Mais se consegue dizer que incide, sobretudo, nos mais jovens. A tese da distância e do «merecíamos políticos melhores», que continuo a não subscrever, é indício de uma desresponsabilização colectiva. O «abstencionismo unido» posiciona-se como ponte para a auto-exclusão. A não-participação é a periferia da decisão. Urge a mudança. É certo que a «nova cidadania» não se institui por decreto, nem é instantânea, não obstante devemos cuidar do legado democrático às gerações vindouras. Será demagógico fazer projecções sobre a democracia futura, tanto mais pelos desafios globais que, diariamente, nos tocam, mas, sempre, vale a pena repetir um conjunto de verdades pacíficas que podem consolidar o exercício da cidadania.
Agilizar e normalizar, socialmente, o exercício dos diversos instrumentos de participação democrática directa: os referendos regionais e, sobretudo, locais; as petições e as iniciativas legislativas populares. Procurar o «associativismo para a propositura», que se inscreva na realidade colectiva, informe, questione, proponha e contra-proponha.
Reforçar a ética no funcionamento do sistema político: o regime de suspensão, substituição e exercício dos mandatos, as incompatibilidades, os registos de interesse, os mecanismos independentes de supervisão, controlo e disciplina que funcionem de forma transparente, isenta e célere, os sistemas de queixa pública e o recurso às novas tecnologias de informação e comunicação para o seu efeito.
Inovar os partidos políticos, superar as oligarquias e o monopólio partidário na representatividade parlamentar: as tecnologias para maior transparência na organização e financiamento dos partidos; o esforço de renovação e formação das elites dirigentes, a representatividade plural das novas clivagens sociais, o espaço para a geração on-line; a desburocratização de estruturas e organizações intermédias, o fomento do debate intrapartidário e a permeabilização às novas temáticas.
Uma formação cívica e educação política global para os jovens: a oferta curricular de línguas estrangeiras e de história mundial, o aproveitamento de instrumentos de mobilidade e intercâmbio internacional, o desenhar de programas de participação/intervenção de jovens e escolas ao nível local e regional, o aumento do investimento em investigação, desenvolvimento e formação para a informação e liberdade de expressão (2).
Só à não democracia convém uma sociedade ignorante e com baixos níveis de intervenção cívica. Uma sociedade bem formada torna-se numa sociedade exigente perante o sistema político. É esta a regra de ouro. Estamos, no entanto, conscientes que na ausência de uma expressa vontade política de romper com o passado todas estas linhas não passarão de mais um exercício visionário.

(1) In Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. 8.ª Edição - Ed. Ulmeiro, 2001
(2) Ver “Política e Participação”, Luís de Sousa. In, 20 ideias para 2020 – Inovar Portugal. Ed. Campo das Letras, 2006

Sé, 12 de Fevereiro de 2007

domingo, fevereiro 04, 2007

REFERENDO – LADO B

Pode um referendo aprofundar a democracia? Questione-se comigo e com José Joaquim Gomes Canotilho (Prémio Pessoa - 2003) (1):
Se o referendo é um instrumento típico da democracia semidirecta então a democracia representativa está a assumir a sua imperfeição e a procurar soluções noutros modelos.
Na democracia directa o povo exerce de forma permanente o poder político. Esse carácter de «permanência» no exercício do poder distingue-se do de «latência» que a democracia representativa «oferece» de 4 em 4 anos. O que se procura é não perder, no contexto comunicativo actual, a matriz genética da democracia.
Nas décadas de 60 e 70 reforçou-se o sentimento da existência uma nova categoria de cidadãos – cidadãos críticos/insatisfeitos – que sugeriam novas formas de participação. Em reacção à realidade democrática clássica do hiperpartidarismo, as novas fórmulas de democracia semidirecta rejeitam, igualmente, soluções plebiscitárias ou personalistas impostas pelas elites e “comités de influência”.
Ao recorrer ao referendo o que se deseja é “aumentar a participação popular, reforçar a democracia deliberativa e impulsionar a dimensão comunicativa da democracia”. Será este capaz de contribuir para diminuir o volume de críticas ao sistema político e reabilitar a confiança nas suas instituições?
O referendo pode dar uma maior visibilidade do poder e transparência na tomada de decisões que vinculam o colectivo. Contudo, a, simples, interpretação do instituto referendário como uma segunda câmara de reflexão ou de controlo à produção de legislação (como nas experiências portuguesas) dificilmente constituirá melhorias no processo democrático. Para tanto seria necessário: que ao «suporte social da democracia directa», a nós, ao povo, se não ligasse uma estratificação (para alguns social): os críticos com diminuto interesse e participação política; os críticos com interesse permanente, formação sólida e conhecimento das regras políticas - o «não voto» referendário, vulgo abstenção, é a negação do objectivo primeiro; que a sociedade portuguesa não se compusesse de sistemas (político, económico, jurisdicional) funcionalmente diferenciados e antes fosse uma sociedade fundamentalmente política no sentido de que tudo se discute, se questiona, se decide – tudo é «politicamente aberto». Por alguma razão o país, desde 97, conta por dois os referendos nacionais, tal como desconhece a sua real implementação local, e a Região continua distante dessas «modernidades», por omissão de regulação (outra obrigação estatutária), dispensadas, talvez, pela sensação de que “aqui tudo é mais próximo” [(Re)lembrem-se, no entanto, esses «teóricos» que o referendo também pode desempenhar funções de equilíbrio territorial entre regiões populosas e regiões demograficamente desertificadas, regiões ricas e regiões pobres].
Ora, se tudo isto é certo, como parece querer ser, sabendo-se, igualmente, que os referendos de iniciativa popular são os que originam maiores taxas de participação, os referendos que surgem do sistema político-partidário, tenderão a ser, sempre, inevitavelmente, qualificados de: “meros plebiscitos, através dos quais os governos, e as maiorias que os apoiam, se limitam a confirmar e demonstrar o apoio popular previsível a uma sua medida política” ou “meros meios de desresponsabilização política, através dos quais se transfere para os eleitores a decisão sobre temas sensíveis” (2). Já Bento de Espinoza nos avisava: “Os homens enganam-se quando se julgam livres”. Será? Por via das dúvidas, dia 11, vote.

(1) “Pode o referendo aprofundar a democracia”, In “Brancosos” e Interconstitucionalidade – Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional. Ed. Almedina, 2006
(2) Um presente avariado, Pedro Magalhães. In Público (07.01.29)

Sé, 29 de Janeiro de 07