domingo, julho 27, 2008

VENTOS CRUZADOS

A elaboração da «Cláusula da Cidadã Europeia mais favorecida» está a revelar-se como uma iniciativa inovadora que poderá vir a ser uma das modalidades prioritárias na construção da «Europa dos Cidadãos», podendo ultrapassar as críticas da generalidade dos eurocépticos a respeito da regulação europeia, como demasiado técnica ou regressiva em matéria de direitos sociais.
A história é simples: a fim de anular as desigualdades de tratamento entre mulheres que pertencem à mesma entidade política (a União Europeia), uma vasta equipa - juristas, advogadas, sindicalista, etc… - estudou as diferentes legislações em vigor nos estados-membros, em matéria de direitos das mulheres, conseguindo reunir, na «Cláusula da Cidadã Europeia mais favorecida», as leis mais progressistas em cada domínio, de modo a apresentar um pacote legislativo uniforme que se aplicasse a todas as mulheres da União (*).
Comparar as leis dos diversos estados-membros deve ser uma primeira etapa de qualquer projecto normativo, quer no âmbito europeu quer nacional, quer regional: o raciocínio é procurar a legislação existente que melhor protege os direitos em questão. Trata-se da busca do princípio geral da harmonização por cima. Curioso é verificar que a aplicação da Cláusula da Nação mais favorecida, consensual para os estados-membros em alguns domínios do comércio, mostra que pode haver uma harmonização internacional desde que haja vontade política. É deste modo que, a harmonização social entre os diferentes estados-membros poderá ser conseguida, já que prometida desde 1992, com Maastricht, e, agora, renovada com o Tratado de Lisboa. O que está, no fundo, em causa, é este princípio poder ser estendido a outras reivindicações no campo dos direitos, liberdades e garantias.
Mais recentemente, têm vindo a público novas intenções por parte das instituições europeias de quererem olhar de um modo sério para a «Europa dos Cidadãos». E sério significa dar passos concretos além das intenções formais consagradas em tratados ou comunicações.
Por exemplo, a saúde na Europa está a assumir um carácter "transfronteiriço" e, por conseguinte, a UE teve de deliberar sobre a forma de desenvolver e codificar a mobilidade e a segurança dos doentes e de encorajar a cooperação transfronteiriça. O Parlamento Europeu já aprovou um programa de acção sobre saúde pública da UE para 2008 2013, que inclui os objectivos do PE para reduzir as desigualdades na área da saúde, bem como a promoção dos cuidados transfronteiras e a mobilidade dos doentes e dos profissionais da saúde. A pedido do Parlamento, a Comissão apresentará uma proposta sobre os serviços de saúde, focando especificamente a mobilidade dos doentes entre os Estados-Membros e os direitos dos doentes.
Recentemente, a Comissão Europeia propôs um programa de distribuição gratuita de frutas e legumes nas escolas dos 27 estados-membros para assegurar uma alimentação saudável para lutar contra a obesidade e problemas de saúde graves e promover junto dos jovens "hábitos alimentares saudáveis" que têm tendência a manter-se ao longo da vida. Segundo dados da Comissão, cerca de 22 milhões crianças da UE têm excesso de peso, mais de cinco milhões das quais são obesas, devendo este valor registar um aumento de 400 mil por ano. Bruxelas previu um co-financiamento europeu no valor de 90 milhões de euros anuais que permita garantir a compra e distribuição nas escolas de frutas e legumes frescos, sendo esta verba completada por financiamentos nacionais nos estados-membros que optarem por participar no programa.
Finalmente, relembro que a Comissão Europeia também propôs a passagem para a taxa reduzida de IVA da restauração, alguns serviços de trabalho intensivo e produtos de higiene absorventes, o que inclui as fraldas de bebé.
A todas estas vertentes “só” falta a certeza de que a «Europa dos Cidadãos» não tem medo dos cidadãos da Europa. Só uma legitimação democrática das instituições europeias garante ventos favoráveis à sua construção. Até lá, continuaremos a sofrer ventos cruzados entre as palavras e os actos.

(*) À Conquista de Direitos comuns. O melhor da Europa para as mulheres, in Le Monde Diplomatique (versão portuguesa), Maio 2008

Angra do Heroísmo, 22 de Julho de 2008

sexta-feira, julho 18, 2008

2028 (em 2995 caracteres)

Escrever sobre o que poderão ser os Açores daqui a 20 anos estaria, para mim, mais no domínio do wishful thinking do que em poderes paranormais dignos de um Nostradamus. Contudo, o momento crítico global impõe-se-me ao ponto de me afastar do fulgor da odisseia espacial. Objectivamente, o que espero dos Açores, em 2028, é que esta região autónoma portuguesa, insular, atlântica, integrada na UE e no (des)concerto planetário dos bens de primeira necessidade, dos produtos energéticos e financeiros, dentro da ínfima margem de decisão e influência da exclusiva responsabilidade do seu Povo, e dos seus representantes, possa continuar a trilhar os caminhos da sustentabilidade, garante única da independência face a condicionantes naturais e políticas. Só que, a desejada consolidação, a longo prazo, da valorização política, económica e social, do nosso espaço, na geoestratégia civil global, está dependente do legado geracional de hoje. Se, em 2028, queremos ser destino turístico mundial, urge a criteriosa preservação dos recursos naturais disponíveis e a (re)qualificação dos serviços prestados e oferecidos. Se queremos ser escala em circuitos comerciais atlânticos, aposte-se em plataformas logísticas marítimas e aeronáuticas, integradas com serviços referenciados internacionalmente. Se queremos auto-sustentabilidade energética, abracem-se a múltiplas fontes renováveis, os incentivos à investigação, a projectos inovadores e a novas fórmulas de mobilidade rodoviária. Se queremos novos pilares económicos, force-se a criação do hiper-cluster de serviços relacionados com o Mar. Se queremos uma “Região Tecnológica”, impõe-se o ensino tecnológico da informação/comunicação e a potenciação privada dos parques tecnológicos projectados. Se queremos valor acrescentado nos produtos, aposte-se na qualificação ambiental dos sectores primário e transformador. Se queremos mais PIB, estimule-se um mercado regional, a qualificação individual, a taxa de participação de mulheres e a capacidade laboral dos mais velhos no mercado de trabalho, incentive-se a natalidade e a mobilidade. Se queremos famílias com rendimentos estáveis, forme-se para o empreendedorismo e para a responsabilidade. Se queremos minorar encargos com a saúde, estimulem-se hábitos de vida saudáveis. Se queremos solidez financeira, defenda-se a fiscalidade regional, o investimento público sustentado e a reorganização da administração territorial. Se queremos as pequenas ilhas menos deficitárias, reforce-se a coesão territorial com novos instrumentos de discriminação positiva. Se queremos ser referência política, reformem-se instituições, estimule-se o pensamento, a intervenção e a representatividade, nacional, inter-regional e internacional. Se queremos “Mais Açores” e menos ilhas, abandonem-se invejas ancestrais formando uma geração solidária na sua História. Se queremos uma sociedade livre, fomente-se a responsabilidade do debate e das palavras. Se, em 2028, queremos ter mais, e ser melhores, hoje conta.

Ponta Delgada, 10 de Julho de 2008

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“Os Açores daqui a 20 anos” é o tema da edição especial do Expresso das Nove que conta com artigos de outros bloggers como Alexandre Pascoal, André Bradford, Francisco Botelho, João Nuno Almeida e Sousa, Nuno Barata, Nuno Mendes, Rui Goulart e a equipa dos Tunalhos.

segunda-feira, julho 14, 2008

UM ACTO FALHADO?

Chamam-lhe um Estado Unitário com regime semi-presidencial, e não há revisão constitucional com incidência nas autonomias que o modifique. Este tem sido o princípio e o fim de todas as lutas e querelas autonómicas dos últimos 33 anos. Eis o enredo do último acto: O Povo Açoriano (105 567 – cento e cinco mil, quinhentos e sessenta e sete votantes nas eleições de 2004), em número de 100% dos seus representantes partidários com assento na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, e fora dela, elaborou uma Proposta de revisão do Estatuto Político-Administrativo, qualificada de "Carta Autonómica", auto-adjectivada de “ambiciosa”, e remeteu-a para aprovação da Assembleia da República. Era um documento politicamente unânime e todos juraram cumprir a Constituição! O Povo Português (5 712 427 – cinco milhões setecentos e doze mil e quatrocentos e vinte e sete votantes, a nível nacional, nas eleições de 2005), em número de 100% dos seus representantes partidários com assento na Assembleia da República, aprovou, por aclamação, a 11 de Junho, uma Proposta de Estatuto Político-Administrativo para a Região Autónoma dos Açores e remeteu-a, a 3 de Julho, para ratificação do Presidente da República. Era um documento politicamente unânime e todos juraram cumprir a Constituição! O Presidente da República, também representante do Povo Português (2 746 689 – dois milhões setecentos e quarenta e seis mil e seiscentos e oitenta e nove votos a nível nacional, e 45 065 – quarenta e cinco mil e sessenta e cinco votos na Região), e de alguns "juristas", que não representam povo algum, enquanto “guardião” da Constituição, que jurou "cumprir e fazer cumprir", enviou, a 4 de Julho, a dita Proposta para o Tribunal Constitucional, para averiguação da constitucionalidade de diversas normas, avisando, conforme despacho assinado com o seu punho "tremulamente autonómico", que o fazia "sem prejuízo da existência de reservas de natureza político-institucional relativamente a outras disposições daquele diploma". A 3.ª revisão do Estatuto Político-Administrativo dos Açores, em 24h, deixou de ser politicamente unânime e conforme a Constituição! Conclusão: a Constituição é, seguramente, para os juristas e, eventualmente, para o Povo.
Contudo, mais grave que o eventual futuro Veto Presidencial é, para bom entendedor, a constatação de que uma revisão constitucional ordinária de 2009, na parte das autonomias, com este Presidente da República, também, estará morta. E morta da pior maneira, por confronto político-institucional! Chamo a atenção para o sublinhado que o Presidente faz quanto às "reservas de natureza político-institucional relativamente a outras disposições daquele diploma" que indiciam, sem segundas interpretações, que há questões políticas, sustentadas em interpretações exclusivamente pessoais do papel reservado às autonomias no sistema político institucional português, que sustentarão o seu veto político a alguns artigos. Mais, o que tanto incomodou Cavaco Silva para que não utilizasse a promulgação do Estatuto Político-Administrativo dos Açores como tampão político suficiente para notificar ao “torpor” madeirense que a revisão de 2004 poderia ser cumprida sem sobressaltos? Falou mais alto o preconceito do que a estratégia? Talvez não. Considerando a conjuntura nacional e internacional, confiará o Presidente, e os seus “peões”, que o país político, mas sobretudo o Povo Português, virará, de novo, costas à dupla Açores/Madeira? Talvez sim, mas quão grande é o erro em que, continuamente, laboram esses senhores, defensores de um insustentável Estado controleiro e centralista, quando teimam em não perceber que o bem para a Autonomia dos Açores é o bem para Portugal. Talvez, hoje, alguns açorianos, entendam porque é que, em 2006, continuei a não votar em Cavaco Silva, pois, como qualquer pessoa de bom-senso, com conhecimento nestas matérias, sempre calculei que a sua peneira autonómica tivesse rede fina. Não prevejo um fim feliz, e espero não ter de me perguntar, daqui a 25 dias (prazo para pronúncia do Tribunal Constitucional), sobre o valor das concessões, em nome de uma unanimidade que, pelo que se lê, foi ineficaz. O Povo Açoriano tem sido paciente com os seus representantes, até um dia…

Ponta Delgada, 07 de Julho de 2008